quarta-feira, 14 de maio de 2014

Poemas do ortónimo e dos heterónimos


Poemas de Ricardo Reis:

Vivem em nós inúmeros

Vivem em nós inúmeros;  
Se penso ou sinto, ignoro  
Quem é que pensa ou sente.  
Sou somente o lugar  
Onde se sente ou pensa. 

Tenho mais almas que uma.  
Há mais eus do que eu mesmo.  
Existo todavia  
Indiferente a todos.  
Faço-os calar: eu falo. 

Os impulsos cruzados  
Do que sinto ou não sinto  
Disputam em quem sou.  
Ignoro-os. Nada ditam  
A quem me sei: eu escrevo.

Amo o que vejo

Amo o que vejo porque deixarei 
Qualquer dia de o ver. 
Amo-o também porque é. 
No plácido intervalo em que me sinto, 
Do amar, mais que ser, 
Amo o haver tudo e a mim. 
Melhor me não dariam, se voltassem, 
Os primitivos deuses, 
Que também, nada sabem. 


Análise do poema de Ricardo Reis "Amo o que vejo"

Analise externa

Divisão  métrica
A/mo/o/que/ve/jo/por/que/dei/xa/rei ( Decassílabo)

Estrofes
Tem três estrofes, cada estrofe composta por três versos chamando-as de terceto

Rimas
Este poema é composto por versos soltos e por uma rima interpolada (“(…) dia de o ver,/(…) mais que ser,”)

Recursos estilísticos
Eufemismo (“Amo o que vejo porque deixarei/Qualquer dia de o ver.”)
Hipérbato (“Melhor não me dariam(…)”)
Hipérbole (“(…)amo o haver  tudo e a mim.”)
Perífrase (“No plácido intervalo em que me sinto, (…)”)

Análise Interna

O poema tem como principais características:
. Efemeridade da vida ;

. A inevitabilidade da morte e por sua vez a sua aceitação calma e serena da ordem das coisas.


Poemas de Alberto Caeiro:

Agora que sinto amor 

Agora que sinto amor 
Tenho interesse no que cheira. 
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro. 
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova. 
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia. 
São coisas que se sabem por fora. 
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça. 
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira. 
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver. 

Sou do tamanho do que vejo

Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo... 
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer 

Porque eu sou do tamanho do que vejo 

E não, do tamanho da minha altura... 

Nas cidades a vida é mais pequena 


Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. 
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, 
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu, 
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, 
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver. 

Análise do poema de Alberto Caeiro "Agora que sinto amor"


Poemas de Álvaro Campos:

Bicarbonato de Soda

Súbita, uma angústia... 
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma! 
Que amigos que tenho tido! 
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido! 
Que esterco metafísico os meus propósitos todos! 

Uma angústia, 
Uma desconsolação da epiderme da alma, 
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço... 
Renego. 
Renego tudo. 
Renego mais do que tudo. 
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles. 
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue? 
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro? 

Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me? 
Não: vou existir. Arre! Vou existir. 
E-xis-tir... 
E--xis--tir ... 

Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue! 
Renunciar de portas todas abertas, 
Perante a paisagem todas as paisagens, 

Sem esperança, em liberdade, 
Sem nexo, 
Acidente da inconsequência da superfície das coisas, 
Monótono mas dorminhoco, 
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas! 
Que verão agradável dos outros! 

Dêem-me de beber, que não tenho sede! 

Eu

Eu, eu mesmo... 
Eu, cheio de todos os cansaços 
Quantos o mundo pode dar. — 
Eu... 
Afinal tudo, porque tudo é eu, 
E até as estrelas, ao que parece, 
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças... 
Que crianças não sei... 
Eu... 
Imperfeito? Incógnito? Divino? 
Não sei... 
Eu... 
Tive um passado? Sem dúvida... 
Tenho um presente? Sem dúvida... 
Terei um futuro? Sem dúvida... 
A vida que pare de aqui a pouco... 
Mas eu, eu... 
Eu sou eu, 
Eu fico eu, 
Eu... 

Poemas de Fernando Pessoa:


SOU O FANTASMA DE UM REI
Sou o fantasma de um rei 
Que sem cessar percorre 
As salas de um palácio abandonado... 
Minha história não sei... 
Longe em mim, fumo de eu pensá-la, morre 
A ideia de que tive algum passado... 


Eu não sei o que sou. 
Não sei se sou o sonho 
Que alguém do outro mundo esteja tendo... 
Creio talvez que estou 
Sendo um perfil casual de rei tristonho 
Numa história que um deus está relendo... 




 Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Análise do poema de Fernando Pessoa "Autopsicografia": 

O título do poema é "Autopsicografia", e analisando o significado de cada elemento desta palavra, Auto+psico +grafia, somos remetidos para a análise dos mecanismos psicológicos envolvidos na própria escrita. 
"O poeta é um fingidor" é o tema apresentado no poema. Significa que, no poema, o poeta finge uma dor que não conhecida com a dor sentida na realidade. Essa, mesmo como ponto de partida para a escrita, não é a dor escrita, pois esta é uma invenção (uma transfiguração) criada pela imaginação. OS leitores, ao lerem o poema, sentem uma dor, mas não a que o poeta sentiu, nem a que ele escreveu, que é a sua não dor.
A última estrofe apresenta, de forma metafórica, a relação entre a razão e o coração. O coração é apresentado como um comboio de corda, um brinquedo que se move orientado pelos carris em que se move. A razão é uma realidade a parte, mas simultaneamente estimulada ("entretida") pelo coração.
De acordo com o poema, a criação poética assente no fingimento, na medida em que um poema não traduz aquilo que um poeta sente, mas sim o que imagina a partir do anteriormente sentido. O poeta é um fingidor que escreve uma emoção fingida, pensada, fruto da razão e da imaginação, não a emoção sentida pelo coração que apenas chega ao poema transfigurada na tal emoção poeticamente trabalhada. O leitor não sente nem emoção vivida pelo poeta, nem a a emoção por ele imaginada no poema, apenas a que nele próprio (litor) é provocada pelo poema, mas é diferente da do poema. A poesia é a intelectualização da emoção.